Com 60 anos de carreira, 22.794 citações em periódicos, 60 premiações e
710 artigos publicados, Ivan Izquierdo é o neurocientista mais citado e
um dos mais respeitados da América Latina. Nascido na Argentina, ele
mora no Brasil há 40 anos e foi naturalizado brasileiro em 1981. Hoje,
coordena o Centro de Memória do Instituto do Cérebro da PUC-RS.
Suas pesquisas ajudaram a entender os diferentes tipos de memória e a
desmistificar a ideia de que áreas específicas do cérebro se dedicariam
de maneira exclusiva a um tipo de atividade.
Ele conversou com a Folha
durante o Congresso Mundial do Cérebro, Comportamento e Emoções, que
aconteceu dos dias 12 a 15 de junho, em Buenos Aires. Izquierdo foi o
homenageado desta edição do congresso.
Na entrevista, o cientista fala sobre a utilidade de memórias
traumáticas, sua descrença em métodos que prometem apagar lembranças e
diz que a psicanálise foi superada pelos estudos de neurociência e
funciona hoje como mero exercício estético.
É possível apagar memórias?
Ivan Izquierdo - É possível evitar que uma memória se expresse,
isso sim. É normal, é humano, inclusive, evitar a expressão de certas
lembranças. A falta de uso de uma determinada memória implica em desuso
daquela sinapse, que aos poucos se atrofia.
Fora disso, não dá. Não existe uma técnica para escolher lembranças e
então apagá-las, até porque a mesma informação é salva várias vezes no
cérebro, por um mecanismo que chamamos de plasticidade. Quando se fala
em apagamento de memórias é pirotecnia, são coisas midiáticas e
cinematográficas.
O senhor trabalha bastante com memória do medo. Não apagá-las é uma pena ou algo a ser comemorado?
A memória do medo é o que nos mantém vivos. É a que pode ser acessada
mais rapidamente e é a mais útil. Toda vez que você passa por uma
situação de ameaça, a informação fundamental que o cérebro precisa
guardar é que aquilo é perigoso. As pessoas querem apagar memórias de
medo porque muitas vezes são desconfortáveis, mas, se não estivessem
ali, nos colocaríamos em situações ruins.
Claro que esse processo causa enorme estresse. Para me locomover numa
cidade, meu cérebro aciona inúmeras memórias de medo. Entre tê-las e não
tê-las, prefiro tê-las, foram elas que me trouxeram até aqui, mas se
pudermos reduzir nossa exposição a riscos, melhor. O problema muitas
vezes é o estímulo, não a resposta do medo.
Mas algumas memórias de medo são paralisantes, e podem ser mais arriscadas do que a situação que evitam. Como lidar com elas?
Antes parado do que morto. O cérebro atua para nos preservar, essa é a
prioridade. Claro que esse mecanismo é sujeito a falhas. Se entendemos
que a resposta a uma memória de medo é exagerada, podemos tentar fazer
com que o cérebro ressignifique um estímulo. É possível, por exemplo,
expor o paciente repetidas vezes aos estímulos que criaram aquela
memória, mas sem o trauma. Isso dissocia a experiência do medo.
Isso não seria parecido com o que Freud tentava fazer com as fobias?
Sim, Freud foi um dos primeiros a usar a extinção no tratamento de
fobias, embora ele não acreditasse exatamente em extinção. Com a
extinção, a memória continua, não é apagada, mas o trauma não está mais
lá.
Mas muitos neurocientistas consideram Freud datado.
Toda teoria envelhece. Freud é uma grande referência, deu
contribuições importantes. Mas a psicanálise foi superada pelos estudos
em neurociência, é coisa de quando não tínhamos condições de fazer
testes, ver o que acontecia no cérebro. Hoje a pessoa vai me falar em
inconsciente? Onde fica? Sou cientista, não posso acreditar em algo só
porque é interessante.
Para mim, a psicanálise hoje é um exercício estético, não um
tratamento de saúde. Se a pessoa gosta, tudo bem, não faz mal, mas é uma
pena quando alguém que tem um problema real que poderia ser tratado
deixa de buscar um tratamento médico achando que psicanálise seria uma
alternativa.
E outros tipos de análise que não a freudiana?
Terapia cognitiva, seguramente. Há formas de fazer o sujeito mudar sua resposta a um estímulo.
O senhor veio para o Brasil com a ditadura na Argentina. Agora,
vivemos um processo no Brasil que alguns chamam de golpe, é uma memória
em disputa. O que o senhor acha disso enquanto cientista?
Eu vim por conta de uma ameaça. Não considero um golpe, mas é um
processo muito esperto. Mudar uma palavra ressignifica toda uma memória.
Há de fato uma disputa de como essa memória coletiva vai ser
construída. A esquerda usa o termo golpe para evocar memórias de medo de
um país que já passou por um golpe. Conforme essa palavra é repetida,
isso cria um efeito poderoso. Ainda não sabemos como essa memória será
consolidada, mas a estratégia é muito esperta.