segunda-feira, 6 de novembro de 2017

'O tempo das crianças é outro', diz antropóloga Adriana Friedmann

Olhar o mundo a partir dos olhos das crianças, de suas descobertas, perspectivas e sentimentos: tarefa tão desafiadora para o adulto, quanto necessária ao propósito de educar uma criança. Escutar a criança, nesse sentido- coloca-se como um pilar nesse processo.
"Essa escuta da qual falamos não é um interrogatório, não é encher a criança de perguntas", coloca Adriana Friedmann, pesquisadora, autora, consultora nas temáticas da infância, e realizadora do Mapa da Infância Brasileira, sua principal atividade dos últimos anos, em entrevista ao Catraquinha.
Afinal, que escuta é essa? Qual é a sua importância? Como ela pode se dar nas relações entre adultos e crianças? A seguir, confira um pouco das reflexões da especialista sobre essa temática e outras, como protagonismo, educação, brincadeira, tecnologia e sentimentos na infância:
Escutar a criança
"Afinal, quem escuta as crianças? Essa escuta da qual falamos não é um interrogatório, não é encher a criança de perguntas. Quando você faz uma pergunta para uma criança, ela é tão esperta que vai te responder aquilo que você quer ouvir, não necessariamente aquilo que corresponde à verdade dela.
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"O tempo inteiro a criança está descobrindo o mundo e se expressando, se colocando"
Para mim, a ideia da escuta não é escutar apenas com os ouvidos, mas também você poder entender o que a criança está expressando e colocando no mundo através das suas atividades de criança,  o brincar, as artes, o movimento, o corpo, a música, a escrita, a palavra. O tempo inteiro a criança está descobrindo o mundo e se expressando, se colocando.
Mas o que está por trás disso tudo? Em primeiro lugar, dar espaço para que a criança respire, seja mais autônoma, tenha tempo livre para ser criança. Em segundo lugar, poder entender quem é essa criança e podermos entender, enquanto pais, educadores e gestores, podermos repensar o que estamos propondo para elas.
É nessas brechas que aparecem as mensagens, pérolas, a partir das quais você vai entender melhor o que essa criança tem interesse, dificuldade, medo, o que ela gosta, quais são os desejos e fantasias. Muitas coisas ela reproduz quando  brinca, desenha e se movimenta. Ela reproduz como vê o mundo, coisas que vive em casa, medos e frustrações".
A criança protagonista
"A criança é protagonista o tempo inteiro. O temHá escolas interessantíssimas, que dão espaço para esse protagonismo, que colocam a criança nesse espaço de protagonista de verdade, ouvindo de verdade. O protagonismo acontece o tempo inteiro. Está acontecendo no recreio, quando você dá uma atividade livre para criança, está acontecendo quando o professor vira as costas e as crianças já estão ali, com sinais e códigos entre elas".
O adulto, a brincadeira e a criança
"Há uma ilusão de que poderemos controlar um filho o tempo todo. Há uma pressão tamanha na vida da criança que inconscientemente ela percebe. E não há espaço para respirar, e isso é ruim para seu desenvolvimento. Ela tem que ter autonomia, seu espaço de controle.
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"Há uma ilusão de que poderemos controlar um filho o tempo todo. Há uma pressão tamanha na vida da criança que inconscientemente ela percebe."

Há uma pressão, um direcionamento o tempo todo, e se acha ainda, apesar de tantos estudos, que o tempo livre de brincar, da criança fazer o que bem tem vontade, é perda de tempo. Na verdade, é um grande ganho para o desenvolvimento da criança, para a sua descoberta e compreensão do mundo.
Hoje temos um adulto muito mais vigiando do que propiciando situações de brincadeira livre
Brincar junto também é um elo de comunicação com a criança. É interessante brincar junto em alguns momentos, mas não ficar querendo ensinar à criança como se faz".
O tempo da infância
"As crianças brincam de faz de conta: imitam ou ressignificam a vida real. Você pode propiciar o tempo, o espaço e objetos. Quando você deixa a criança, ela constrói uma narrativa na brincadeira. A gente, por conta do tempo, acaba interrompendo essas narrativas da brincadeira. Eu sempre falo para os professores que, de uma forma inconsciente, a gente acaba podando violentando processos que a gente não acompanha. A brincadeira acabou por que o relógio diz, mas o tempo das crianças é outro"
Emoção e sentimentos
"Acho que nossa atitude de controle, de querer ensinar o tempo todo, também tem a ver com as doenças que as crianças tem tido, físicas e psíquicas, como hiperatividade. A criança que tem muita energia, agressiva, que não para um minuto, muitas vezes é medicada.
Por que será que essa criança está a mil por hora? Muitas vezes ela está pedindo socorro. Ela está agressiva por que não sabe lidar com suas emoções de outro jeito.
Em vez de encaixotá-la e medicá-la, já colocar uma tarja dizendo que ela é assim ou assado’, crie situações em que ela possa colocar energia para fora. Não é preciso ser psicólogo para isso. É claro que muitas vezes as crianças precisam ser encaminhadas para um especialista, mas esse não é o primeiro recurso".
Criança, publicidade e consumo
"É difícil falar não, mas por trás dessa fala e desse desejo [da criança, que pede coisas] há um 'presta atenção em mim'. Se a criança fica chacoalhando o adulto e pedindo algo, é porque quer o adulto com ela. O brinquedo é muito mais uma desculpa. Mas, claro, também há uma influência subliminar da propaganda nesse gesto de pedir".
Telas e desenvolvimento infantil
"Até um ano de vida, a criança vai descobrir o mundo através dos sentidos. É uma fase que precisamos oferecer espaços de experimentação: para a criança levar coisas à boca, cheirar, tocar, pisar, cair e levantar.
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"A criança fica hipnotizada pela tela, mas o corpo não se mexe, e cria uma grande ansiedade quando o adulto chega e diz que acabou"

Estamos vendo os bebês sentados nos carrinhos sempre com uma tela na frente, e com pouco contato com a natureza. E isso é uma coisa nossa, de adultos, de sociedade. A criança fica hipnotizada pela tela, mas o corpo não se mexe, e cria uma grande ansiedade quando o adulto chega e diz que acabou.
Nos primeiros anos de vida essa exposição é pouco indicada porque a criança ainda não tem maturidade cognitiva. Com as telas, ela está numa concentração mental, e o corpo está parado. Sempre coloco assim: telas para os bebês, nem pensar".
A cultura, as origens e as singularidades de cada criança
"A gente acha que conhece as crianças, mas a verdade é que a gente não conhece. De repente, você está ali com 2 ou 3 filhos, criados na mesma família, e cada um é um mundo. Não só a criança já tem um repertório cultural, familiar, mas tem um repertório próprio. Cada criança tem um jeito único, uma essência única. Mas é também quando falamos de potência: cada criança tem uma potência única que a faz única. 
Você vê muito as escolas e os educadores buscando modelos lá fora. Eu digo que os modelos podem ser inspiradores, mas temos a nossa cultura. Não podemos deixar de considerar quem é essa criança, sua família, a diversidade cultural do nosso país.  Todos somos únicos, temos uma história ancestral que é unica".

Ludoeducação: pedagogia que mistura brincadeiras com aprendizado

A palavra "lúdico", tão utilizada por quem trabalha com infância e educação, vem do termo em latim "ludus", que significa brincar ou jogar. E quando a educação se apropria desse espírito, o que surge?
Você já viu falar de "ludoeducação"? Trata-se uma abordagem pedagógica que incorpora a ludicidade, ou seja, as brincadeiras, os jogos e o potencial brincante natural da criança, ao processo de ensino-aprendizagem.
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Enquanto estão brincando, as crianças apreendem códigos sociais, socializam com o igual e o diferente, aprendem a negociar suas vontades e vivenciam uma infinidade de experiências educativas.
A proposta é utilizar a brincadeira para apresentar à criança caminhos para as descobertas, a apreensão da linguagem e a resolução de problemas.
De acordo com essa perspectiva, a criança teria com o ensino uma experiência mais significativa, estimulante e, claro, divertida.
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A proposta dessa abordagem pedagógica é aproveitar a linguagem da brincadeira para oferecer às crianças a possibilidade de aprender brincando.
De acordo com informações do Centro de Referências em Educação Integral, o potencial educativo das práticas lúdicas é vasto: estimula a coordenação motora, as habilidades intelectuais, o desenvolvimento emocional, além da comunicação verbal e não-verbal do indivíduo. Por meio da brincadeira, as crianças compreendem papéis sociais, avaliam soluções, negociam, fazem estimativas, planejam, além de socializarem com seus pares.
“A ação na esfera imaginativa, numa situação imaginária, a criação de propósitos voluntários e a formação de planos de vida reais e impulsos volitivos aparecem ao longo do brinquedo, fazendo do mesmo o ponto mais elevado do desenvolvimento pré-escolar. A criança avança essencialmente através da atividade lúdica”, defende o teórico russo Lev Vygotsky, ícone do conceito de ensino como processo social.