Baixa performance escolar, aumento de peso, sintomas depressivos, declínio da atividade física. Efeitos nocivos como estes relacionados à privação do sono deveriam bastar para comprovar a importância de uma noite bem dormida.
Nas últimas décadas, porém, a ciência vem mostrando como um sono de qualidade é fundamental para a aprendizagem ao consolidar memórias e estimular nossa cognição.
Mas as escolas continuam ignorando estas descobertas ao praticar horários que estão muito aquém da necessidade de sono dos alunos.
É o que defende o neurocientista pós-graduado pela Harvard, Fernando Louzada. Em conversa com Carta Educação, o coordenador do Laboratório de Cronobiologia Humana da Universidade Federal do Paraná (Labcrono – UFPR) falou sobre como a reorganização do tempo pode ser mais uma contribuição para a melhora da educação como um todo.
Carta Educação: Como o sono está relacionado com a aprendizagem?
Fernando Louzada: Ele é importante não só para a consolidação do aprendizado. O sono e mais particularmente os sonhos possibilitam a geração de novas ideias, a criatividade e, consequentemente, a capacidade de resolução de problemas. Trabalhos mostram que dormir ajuda a formar memórias declarativas, que é toda aquela que você consegue declarar como nome, datas, fatos, locais e também a memória procedural, ou seja, motora. Se você aprende a realizar uma tarefa motora de digitação, por exemplo, quando você dorme, o sono melhora o seu desempenho ou impede a piora. O sono também favorece o insight, a resolução de problemas. Como a gente descobriu isso? Propomos um desafio de videogame para voluntários e quando eles não conseguiam passar de certa fase, dormiam uma sesta. Comparado com outro grupo que não dormia, as pessoas que tiravam o cochilo dobravam a chance de sucesso em resolver a tarefa.
CE: Por que?
FL: A gente pode pensar no sonho como uma simulação da realidade. Tem uma área cerebral pré-frontal que é fundamental para a consciência, para o planejamento, que te situa, então se você pensar em fazer uma coisa muito maluca, ela te ajusta às regras sociais. Durante a fase que a gente chama de REM, fase do sono que sonhamos mais, essa área está inativa. Por isso, surgem associações absurdas que na hora você não acha. Nada é absurdo nos sonhos, você se permite fazer associações nos sonhos que você não se permitiria durante o dia. Então os sonhos são momentos muito mais criativos do que a vigília.
CE: Neste sentido, a soneca depois da realização de uma tarefa também é eficaz?
FL: Há estudos mostrando que episódios bem curtos de sono já são suficientes para reter aprendizados. Quando você dorme um sono de dez, quinze minutos, você não entra na fase REM. Esse sono, por falta de nome melhor, a gente chama de sono “não REM” e também é importante para a cognição. Por exemplo, este estudo que a gente fez com o videogame mostrou essa evolução no desafio após os voluntários terem dormido 1h30, na fase “não REM”.
CE: Partindo dessas descobertas, os horários das instituições de ensino estão condizentes com as necessidades de sono dos alunos?
FL: Não. A lógica que define os horários das instituições é uma lógica que desconsidera todo este conhecimento. É lógica de que é possível fazer o que quiser com o sono. Se eu quiser dormir mais cedo eu posso, se eu dormir menos também não tem problema. Por trás dessa lógica, tem a ideia de que dormir é uma perda de tempo e que acordar cedo tem mais valor na sociedade. As pessoas continuam criando concepções a partir da própria experiência. Então se você é uma pessoa que tem facilidade para acordar cedo e tem uma necessidade de sono que não é grande, você não entende o que é precisar de mais ou não conseguir acordar cedo. Mas a ciência já mostrou há algum tempo que existem diferenças individuais relacionadas à estrutura do sistema nervoso, à estrutura genética dos relógios biológicos.
CE: Então cronotipos são conceitos cientificamente embasados?
FL: Claro, já estão descritos os genes associados a isso. Se você deixar a critério de preferência, algumas pessoas vão acordar muito cedo e outras muito tarde. Se você comparar estes dois tipos nas férias escolares, encontra diferenças de 12 horas de um aluno para o outro. Aí o horário escolar traz todo mundo para o mesmo fuso. Mas ao fazer isso, não faz de uma forma intermediária, traz todo mundo para o fuso matutino e esse é o problema. Faço uma analogia com a depressão. Quem nunca teve um episódio não sabe o que é estar deprimido. As pessoas falam “não pode ser que você não consiga sair da cama, ir trabalhar”. A lógica é a mesma, quem nunca teve dificuldade para acordar cedo não consegue imaginar o que é não conseguir sair da cama de sono, acha que é preguiça.
CE: Há um preconceito com a pessoa que acorda mais tarde?
FL: Com certeza. Os próprios políticos disseminam essa ideia com o discurso do “eu sou dedicado, acordo às 4h da manhã para trabalhar” e isso se tornou um valor dominante na sociedade. Quem que é promovido: quem chega antes ou quem chega sempre atrasado no trabalho? Dentro dessa lógica, quem adquire os postos de comando e de decisão são os matutinos, a sociedade privilegia demais esse cronotipo.
CE: Qual seria a organização temporal ideal para a escola levando em consideração as diferentes necessidades de sono que o indivíduo tem ao longo da vida?
FL: Em termos ideais, estaríamos falando de uma escola em tempo integral e isso não significa entrar às 6h da manhã e sair às 6h da tarde. No Ensino Infantil, tem que ser dada a oportunidade para a criança fazer a sesta, ou seja, dormir depois do almoço. Como? Força todo mundo a deitar e dormir? Não. Você tem que ter dois ambientes. Um ambiente do sono e um ambiente das atividades lúdicas, da leitura, enfim do que a escola decidir para aqueles que permanecerem acordados. Porque não é uma obrigação dormir, é uma possibilidade. Ninguém deveria ter que entrar às 7h da manhã na escola, mas se houver a necessidade por conta de espaço físico, da escola ter que funcionar em dois turnos, entre outras coisas, quem tem mais facilidade para acordar cedo? São as crianças. Quem tem filho sabe que quem te tira da cama às 6h da manhã são os filhos de quatro, seis anos de idade, não é o filho adolescente.
CE: Mas fazemos o contrário. Conforme os alunos vão crescendo e avançando na escola, vamos adiantando o horário do início das aulas.
FL: Tudo isso está atrelado ao preconceito de que é preciso “preparar” o adolescente para o mundo do trabalho, de que a vida de adulto é dura e que ele tem que se acostumar, criar essa rotina. O que não é verdade. Ao perceber que isso tem muito a ver com a produtividade do funcionário, o mundo corporativo tende a ser muito mais flexível em relação aos horários de trabalho. Mas as escolas não, porque as escolas ainda carregam essa ideia militar, que a disciplina se dá dessa maneira.
CE: E no caso do Ensino Médio, qual seria o horário ideal?
FL: A Academia Americana de Pediatria sugere iniciar as aulas depois das 8h30. Já é um grande avanço, mas o que eu tenho proposto é um horário flexível. Ter um núcleo comum que começa às 9h e vai até o 12h e um outro núcleo com horário flexível com atividades como aula de língua, educação física, etc. Então se você entrou às 7h você sai 12h e se você entra as 9h você sai as 14h. O adolescente precisa dormir nove horas em média e durante os dias letivos está dormindo sete e meia. O argumento daqueles que são contrários é que não adianta começar a aula depois porque o adolescente vai começar a dormir mais tarde. Claro que adianta, porque uma coisa é você precisar dormir às 22h, outra é meia noite. Mostramos em uma pesquisa que independentemente do horário que o jovem tem que acordar para ir para a escola, ele dorme no mesmo horário. Por isso eu brinco que a melhor escola é aquela perto de casa porque é aquela que oferece mais tempo de sono.
CE: A tendência vespertina do adolescente é somente biológica ou há a contribuição de fatores ambientais, comportamentais, como ficar na internet, jogar videogame, entre outros?
FL: Na minha tese de doutorado, fui atrás de comunidades rurais que não tinham acesso à tecnologia para entender isso. A tendência a atrasar os horários do sono é biológica no adolescente, você encontra inclusive em comunidades que não tem acesso à energia elétrica. Só que a tecnologia exacerbou demais isso. Então nas comunidades rurais essa inclinação é pequena, mas nas comunidades urbanas é enorme.
CE: Se as escolas mantiverem os mesmos horários, há estratégias para beneficiar o sono do estudante?
FL: Sempre resisto em dar esse tipo de recomendação porque a gente acaba jogando para o indivíduo uma solução que deveria ser social. Mas, claro, isso não vai mudar de hoje para amanhã. Em alguns casos, a sesta é uma estratégia que pode ajudar, não sendo muito longa para não atrapalhar o sono noturno (1h, 1h30). Mas não é boa para pessoas que sofrem com inércia de sono, ou seja, acordam e continuam sonolentas, tem dificuldade para pegar no tranco de novo. Outra está relacionada a ajudar o relógio biológico entender os horários. Por exemplo, reduzir a estimulação luminosa a noite e aumentar de manhã.
CE: Em sua opinião, por que resistem em fazer essa mudança no horário escolar?
FL: As pessoas ainda não incorporam a ideia da importância do sono. Há um preconceito, ideias muito arraigadas na sociedade em relação a isso, desconhecimento. Acho também que tem uma questão – que eu entendo – por parte dos educadores que é “eu tenho tantos problemas mais sérios e vem esse cara falar que eu preciso mudar o horário”. Tem problemas tão graves que realmente é difícil sensibilizar, mas por outro lado acho que a tragédia educacional brasileira é tamanha que a gente tem que atuar em todas as frentes, tem que fazer de tudo para tentar melhorar.
Fonte: Carta Capital
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