por Roberta Jansen e Maria Clara Serra
O jogador do futuro é brasileiro. Ele será apresentado ao mundo em 12
de junho de 2014, durante a abertura da Copa do Mundo — a primeira
realizada no país desde 1950, quando o Brasil perdeu para o Uruguai na
final, em pleno Maracanã. Na cerimônia, o atleta canarinho pretende
marcar o maior gol da ciência nacional dos últimos anos: ser o primeiro
paraplégico do mundo a chutar uma bola e correr para a torcida.
Neurocientista e torcedor fanático de futebol, o brasileiro Miguel
Nicolelis, da Universidade de Duke, nos EUA, conta que está tudo pronto
para apresentação. Um paraplégico usando uma veste robótica (ou
exoesqueleto) será capaz de dar o pontapé simbólico na festa de abertura
da competição. Não se sabe ainda se será um homem ou uma mulher, mas
será um brasileiro, na faixa dos 25 aos 35 anos, com paralisia total dos
membros inferiores.
Esta
pessoa não apenas será capaz de dar o pontapé inicial na cerimônia. Ela
também sentirá - provavelmente pela primeira vez em muitos anos — a
grama do campo sob seus pés. Uma pele artificial será colocada na sola
do pé do jogador e emitirá sinais para o seu antebraço. Na realidade, a
sensação de andar sobre a grama será no braço, mas, como a pessoa está,
de fato, caminhando, ela “engana” o cérebro, que passa a incorporar as
pernas virtuais como próprias, e “sente” a grama sob os pés.
- Eu
mesmo testei, e é incrível - garante Nicolelis. - É uma ilusão muito
poderosa, eu senti como se estivesse correndo pelo gramado.
O
grupo de pesquisa de Nicolelis é um dos mais avançados do mundo num
campo inovador de pesquisa, conhecido pelo pouco amigável nome de
interface cérebro-máquina. O objetivo dessa linha de estudos é conseguir
mover membros virtuais (externos ao corpo) apenas com a força da mente.
Parece pura ficção científica, mas é tecnologia de ponta. O traje
robótico, por exemplo, construído a partir de ligas leves e alimentado
por um sistema hidráulico, foi elaborado por Gordon Cheng, da
Universidade Técnica de Munique, e tem a função de trabalhar os músculos
da perna paralisada. E, embora seja fruto de um complexo trabalho
envolvendo centenas de cientistas ao longo de pelo menos dez anos, não é
tão difícil de explicar como pode parecer.
Pessoas que não têm
nenhuma lesão na medula se movimentam da seguinte forma: em primeiro
lugar, elas imaginam o movimento que querem executar; por exemplo,
chutar a bola que está a sua frente. Em seguida, o cérebro envia essa
intenção de movimento à perna, por meio de células nervosas da coluna.
Somente então, quando os sinais nervosos chegam aos membros inferiores, o
movimento acontece. Claro que não nos damos conta de nada disso porque
tudo acontece em frações de segundo, criando a ilusão de uma
simultaneidade que, na verdade, não existe.
Chips decodificam intenção de movimento
Em
pessoas paraplégicas, no entanto, isso não ocorre. O sinal enviado pelo
cérebro, indicando o movimento, não chega aos membros inferiores por
conta da lesão na medula, que bloqueia o caminho dos sinais nervosos. O
que o grupo de pesquisadores liderados por Nicolelis descobriu foi uma
forma de driblar tal interrupção.
Isso é possível por meio de
chips acoplados a uma touca, capazes de decodificar a atividade elétrica
gerada no cérebro pela intenção do movimento. Esta intenção, por sua
vez, será traduzida na forma de comandos digitais por um computador
levado nas costas do jogador, em uma mochila. São esses comandos, por
fim, que vão gerar movimento nos membros externos do exoesqueleto.
A
pessoa que dará o pontapé inicial da Copa do Mundo estará vestida com o
protótipo do que o grupo do cientista chama de prótese inteligente -
uma estrutura metálica articulada em pontos-chaves dos membros
paralisados.
- É como um aparelho de reabilitação, uma prótese de
corpo inteiro, que permitirá ao paciente realizar os movimentos - revela
Nicolelis. - Enquanto a pessoa usá-lo, voltará a ter autonomia.
O
protótipo ficou pronto em novembro passado e, desde dezembro, um grupo
de oito pessoas (seis homens e duas mulheres) com lesões nos membros
inferiores está treinando o uso da prótese, como parte do projeto Andar
de Novo. Todas elas são candidatas a se tornarem o jogador do futuro,
mas o nome de quem vai adentrar o gramado, segundo o neurocientista,
ainda não foi revelado. Seu uniforme tampouco foi apresentado - é uma
surpresa guardada para o dia da festa - mas, certamente, será verde e
amarelo.
O grupo de cientistas já até levou o protótipo para um
teste em um estádio de futebol. Havia o temor que, num local aberto,
repleto dos mais diversos sinais eletrônicos, pudesse haver
interferências no equipamento. Mas, conta o neurocientista, deu tudo
certo. Embora Nicolelis tenha feito boa parte de sua carreira nos EUA, o
treinamento para a Copa do Mundo está sendo realizado em São Paulo, no
Laboratório de Neurorobótica da Associação Alberto Santos Dumont, em
parceria com a Associação de Assistência à Criança Defeituosa.
-
Tudo está caminhando como o planejado - conta Nicolelis. - Toda a
tecnologia foi desenvolvida, os pacientes já são capazes de controlar os
movimentos e interpretar o feedback tátil.
Novo capítulo nas terapias de reabilitação
Ao fim, explica o neurocientista, quem estiver mais bem preparado dará o pontapé simbólico, será uma escolha circunstancial.
-
Mas estão todos muito engajados e todos continuarão trabalhando. E
haverá outras demonstrações. As pessoas estão achando que é o fim do
projeto (a demonstração na Copa do Mundo), mas, na verdade, é apenas o
começo.
Para o cientista, sua audaciosa engenhoca abre um novo capítulo nas terapias de reabilitação, não só de paraplégicos.
-
A técnica poderá ser usada para treinamento e reabilitação de pessoas
que tenham limitações, como idosos com dificuldade de andar - explica. -
Poderá dar autonomia a paraplégicos e, quando adicionarmos braços,
poderá ser usada também por tetraplégicos.
Nicolelis diz não ter o cálculo final do custo do protótipo, mas admite que é muito caro ainda.
-
Com a popularização, o preço vai cair e se tornar acessível. É como o
primeiro carro de Henry Ford ou o primeiro avião de Santos Dumont -
compara, deixando de lado a modéstia.- Vamos difundir para o mundo todo
algo extremamente útil para milhões de pacientes e, ao mesmo tempo,
galvanizar o interesse pela ciência num evento esportivo, passando uma
imagem do Brasil que poucas pessoas têm em mente.
De fato, se
conseguir fazer um paraplégico dar o pontapé inicial da Copa, Nicolelis
se credenciará ao cobiçado Prêmio Nobel (seria o primeiro do país) e o
Brasil mudará de patamar na ciência mundial. Um gol decisivo numa Copa
do Mundo em território nacional.
Fonte: Jornal O Globo
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