por Martha Mendonça
Aos
7 anos, T. convenceu seus pais, profissionais liberais de Belo
Horizonte, a demitir duas empregadas domésticas. O motivo alegado: elas
batiam nele. As duas negaram as agressões, mas o menino chegou a
apresentar uma marca roxa no braço. Um ano depois, nova queixa sobre
outra empregada. Revoltado, o casal decidiu colocar câmeras escondidas. O
que viram foi uma surpresa: T. era o agressor, com pontapés e atirando
brinquedos. No fim de uma semana, perguntaram se a empregada havia
batido nele novamente. Choroso, T. respondeu que havia sido surrado na
cozinha – onde as imagens não mostravam nada. Diante das sucessivas
mentiras, foi castigado.
Três anos depois, reincidiu. Com
os pais já separados, adquiriu o costume de tirar dinheiro da carteira
dos dois, dizendo ao pai que era a mesada da mãe, e vice-versa. Os pais
só descobriram a farsa durante uma discussão sobre dinheiro. Pouco
antes, uma empregada fora mandada embora da casa da mãe depois do sumiço
de R$ 50. T. disse que a vira pegar a nota. Diante disso, os pais
concluíram que o menino precisava de tratamento. Poucas sessões depois, o
diagnóstico foi duro: ele apresentava o chamado transtorno de conduta,
nome formal para a velha “índole ruim”.
“Não é fácil a
sociedade aceitar a maldade infantil, mas ela existe”, diz Fábio
Barbirato, chefe da Psiquiatria Infantil da Santa Casa, no Rio de
Janeiro. Ele explica que a criança ou adolescente que tem essa patologia
pode se transformar, na vida adulta, em alguém com a personalidade
antissocial – o termo usado hoje em dia para o que era chamado de
psicopatia. “Essas crianças não têm empatia, isto é, não se importam com
os sentimentos dos outros e não apresentam sofrimento psíquico pelo que
fazem. Manipulam, mentem e podem até matar sem culpa”, diz Barbirato.
Por volta da década de 70 do século passado, teorias sociais e
psicanalíticas tentaram vincular esse comportamento perverso à educação e
à sociedade. Nos últimos anos, porém, os avanços da neurologia sugerem a
existência de um fenômeno físico: imagens mostram que, nas pessoas com
personalidade antissocial, o sistema límbico, parte do cérebro
responsável pela empatia e pela solidariedade, está desconectado do
resto.
Um obstáculo para o tratamento de crianças com
sinais de transtorno de conduta é o próprio tabu da maldade infantil. O
senso comum afirma que as crianças são inocentes – uma crença que
resulta da evolução histórica da família. Até o século XVII as crianças
eram consideradas pequenos adultos e muitas nem sequer eram criadas
pelos pais. No século XVIII, isso mudou. A família burguesa fechou-se em
si mesma, dentro de casa. O lar virou um santuário e a criança o centro
dos cuidados e das atenções. Foi o nascimento do sentimento de
infância, dentro de um grupo que agora tinha como laços o afeto e o
prazer da convivência. Se a criança é o eixo do sentimento moderno de
família, ela não pode ser má. Eis o tabu.
NÃO PODE
A atriz mirim Klara Castanho como Rafaela, a criança manipuladora de
A atriz mirim Klara Castanho como Rafaela, a criança manipuladora de
Viver a vida. A justiça não quer que ela seja má
Desde que a novela das 9 da TV Globo, Viver a vida,
foi ao ar, em 2009, o Ministério Público do Rio de
Janeiro acompanhou de perto a personagem Rafaela. A menina, vivida pela
atriz mirim Klara Castanho, de 9 anos, desagradou à Justiça. O autor,
Manoel Carlos, foi notificado. No documento, um pedido para que ele
tenha “cuidado ao elaborar a personalidade de personagens cujos atores
são menores de idade”. Na trama, Rafaela é uma menina mimada, que, para
defender seus interesses, faz chantagem com uma amiga de sua mãe.
Rafaela não pratica a maldade sem motivações concretas ou demonstra
curiosidade mórbida. Ainda assim, o Ministério Público considera a
personagem pouco adequada. Criança, aparentemente, não pode ser vilã.
As
escolas, porém, desmentem isso: elas costumam ser o palco diário das
maldades das crianças com transtorno de conduta. A psiquiatra carioca
Ana Beatriz Barbosa Silva, autora do best-seller Mentes perigosas,
diz que crianças e adolescentes com esse distúrbio costumam estar por
trás dos casos mais graves de bullying. Em maio, ela lançará Bullying – Mentes perigosas nas escolas,
com foco na maldade infantil. “É típico do jovem com transtorno de
conduta saber mentir e manipular para que os outros levem a culpa”,
afirma. Barbirato faz uma ressalva. “Pequenas maldades e mentiras são
absolutamente comuns na infância. De cada 100, cerca de 97 têm
comportamento normal e, ao amadurecer, saberão diferenciar o certo do
errado e desenvolverão a empatia”, diz.
Mas, e os 3% que
faltam? Serão obrigatoriamente personalidades antissociais na vida
adulta, seres sem empatia? Os especialistas são taxativos ao afirmar que
não se cura transtorno de conduta. Ele será, no máximo, amenizado se
tratado a tempo e houver sempre algum tipo de vigilância. Na maior parte
dos casos, porém, isso não acontece. E o resultado de ninguém ter
notado esses sinais durante a infância aparece de forma trágica. “Essa
criança poderá ser um político corrupto, um fraudador, até um torturador
físico ou emocional, chegando a um assassino em série”, diz Ana
Beatriz.
No
último domingo, um exemplo extremo ocorreu na Pensilvânia, Estados
Unidos. Jordan Brown, de apenas 11 anos, deu um tiro na nuca da namorada
do pai, grávida de oito meses. O menino chegou a conseguir enganar a
polícia dizendo que uma caminhonete preta havia entrado na propriedade
da família. Mas a arma foi encontrada em seu quarto. A polícia não
entendeu a motivação do crime. “Há casos em que a explicação é
simplesmente uma curiosidade mórbida”, afirma Ana Beatriz. “Todos nós,
quando pequenos, temos essa curiosidade. Mas, por volta de 4 ou 5 anos,
começamos a ter a percepção do outro. O que não acontece com quem tem o
transtorno de conduta.” A falta de tratamento dessas crianças é, muitas
vezes, consequência da ignorância ou da falta de recursos. Mas não só. A
estrutura familiar de hoje, com pais trabalhando fora o dia todo e com
tendência a dar poucos limites aos filhos, favorece o desenvolvimento do
transtorno de conduta. Qualquer criança que não é repreendida pelo pais
sobre seus erros tende a crescer pouco civilizada. Se ela tem uma
tendência antissocial, não haverá amarras para esse comportamento.
O
relato de um psiquiatra do Rio Grande do Sul mostra quanto é difícil
pais assumirem a necessidade de tratamento dos filhos. Em 2008, ele teve
como paciente R., de 11 anos. A menina colocara fogo na mochila de uma
colega de turma. Repreendida por professores e pais, teve como reação
apenas rir. No ano anterior, fizera o mesmo com o rabo do cachorro de
uma prima. Questionada, disse apenas que a prima não merecia ter um
cachorro. Durante o tratamento, R. afirmou ao psiquiatra que não nutria
nenhum sentimento especial em relação aos pais.“Ela tinha um olhar frio e
uma ironia extremamente precoce para sua idade. Não sentia culpa. R. me
tratava como um empregado”, diz o psiquiatra. Depois de um ano de
tratamento, os pais acharam que ela estava melhor e poderia interromper
as sessões. “Ela os manipulou – e disse a mim, explicitamente, que
fingiria estar melhor e conteria seus atos. Contei a eles, mas não
acreditaram em mim”, afirma. R. jamais voltou a seu consultório.
Fonte: Revista Época
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