A bandana colorida na cabeça dá a Max Braverman a segurança de que ao
fim do dia, tudo estará bem. É assim que um pirata se veste. E é assim
que Max deve se vestir todos os dias. Pois ele bem sabe, piratas sempre
terminam o dia bem.
Mas o pequeno Max ainda tem muitos desafios para enfrentar. A falta
de coordenação motora, por exemplo, e uma simples atividade em sala de
aula torna-se um suplício. Mesmo usando sua roupa de pirata, o simples
exercício passa a ser uma tarefa impossível de se realizar. “Estúpida
tesoura!”, ele pensa, enquanto tentar recortar um coração no papel.
A tesoura não obedece seu comando, e o sentimento de frustração acaba
explodindo por suas mãos. A tesoura vai para um lado, os corações
picados vão para outro. Há alguma coisa de errado com esse menino, mas
ninguém sabe o que é. O jeito que ele se veste, que ele se comporta, a
falta de interesse em seus colegas, ou o interesse demasiado em coisas
específicas, fazem de Max um menino estranho. Talvez seja uma fase, ou
talvez ele não seja bom com tesouras ou com moda. Mas o que poderia passar desapercebido aos olhos da família Braverman é que o pequeno Max
é, de fato, autista. Não há nada de errado com Max, ele é apenas
diferente. E apesar do autismo não ser uma doença, nem de ser
contagioso, vai exigir muita atenção de todos ao seu redor.
A cena descrita de Parenthood ilustra apenas um pequeno
exemplo do espectro do autismo. Para os pais de Max, acostumados ao
estereótipo do autista recluso em um mundo só dele, é difícil a
acreditar que o filho quase normal possa ser um autista.
Neste dia 2 de abril, data em que se comemora o Dia Mundial de Conscientização do Autismo,
o Teleséries se veste de azul para chamar a atenção de todos para uma
sindrome complexa de se definir. É uma síndrome policromática, que
ultrapassa o preto e o branco, até os tons de azul, e pode ser
representada como um quebra-cabeça de todas as cores.
Uma sindrome que vai além de um mundo de repetições, de pouca imaginação, e da total obsessão. Um mundo que é só deles, e tão nosso.
O autismo e o estereótipo
“Eles não mantêm o contato visual, usam as pessoas como ferramenta
para conseguirem o que querem. Apresentam risos e movimentos
inapropriados, modo e comportamento arredio, giram objetos de forma
bizarra e peculiar, não demonstram medo de perigos reais, agem como se
fossem surdos e resistem ao contato físico”. Assim são descritos a
maioria dos autistas. E é assim que se propaga uma das mais errôneas
ideias sobre o que é o espectro do autismo.
A síndrome é uma disfunção cerebral que afeta o desenvolvimento
social em diferentes graus de intensidade. Nem todo autista desenvolve
os mesmo padrões de comportamento. Em um autismo mais severo, o
individuo é incapaz de qualquer interação social, vivendo em um mundo só
dele, com interesses e regras próprias A forma mais branda, ou
altamente funcional, é chamada de Sindrome de Asperger, na qual o
indivíduo traz como característica a inteligência emocional e social
reduzida, mas um alto nível de aprendizagem, principalmente
especializada.
Essa diferença é mostrada na televisão quando se compara Jacob, de Touch, e Max, de Parenthood.
Ambos autistas. Jake tem um comportamento mais clássico do autismo, já
Max é Asperger, vive um conflito cruel entre ser normal e tão diferente
ao mesmo tempo. Em Touch, o garoto se comunica por meio de
números e padrões, quase não percebe a presença de outras pessoas, e se
conforta em atividades que exijam foco. Essa habilidade em distinguir
padrões dá ao autista um mito de poder. Jake consegue prever
acontecimentos importantes em Touch por causa desses padrões.
O mesmo mito é explorado em Alphas, com a história do
personagem Gary Bell, um jovem autista super poderoso que vê ondas
eletromagnéticas e consegue traduzi-las em informações na velocidade de
um computador. Gary é um alpha, um autista super poderoso, mas que não
consegue entender expressões faciais e nem é capaz de fazer contato
visual. Gary é a representação de um autista moderado.
Em Parenthood, se não fosse o diagnóstico precoce, Max
passaria toda a sua vida sendo um rapaz de comportamento fora do padrão,
talvez fosse tachado de tímido, ou chatinho, mas nada mais que isso. O
personagem, que apresenta a forma branda do autismo, ajudou a trazer a
consciência para o espectro da síndrome com todas as cores que ela se
manifesta. Fora de estereótipos.
Sou asperger, não sou estranho
“Você acha que ele teria me amado mais se eu fosse assim como você?
Se eu fosse normal?”, pergunta Astrid para seu outro eu. Naquele
universo paralelo, a personagem de Fringe é Asperger. Os
Aspergers geralmente sentem-se como se não pertencessem ao mundo real,
mas não são vistos como autistas, e por isso, vivem a pressão de
funcionar no mesmo padrão que a maioria das pessoas. Asperges são
diretos, racionais, inteligentes, gostam de assuntos específicos, são
intensos, amam, sofrem, ficam tristes, alegres, vivem o limbo entre o
ser e não ser autista, são incompreendidos na maioria das vezes.
Alt-Astrid sofre com a certeza de que nunca foi capaz de
demonstrar o amor que sentia pelo seu pai. E se pudesse, talvez tivesse
dificuldade em perceber se o seu amor era reciproco. Essa dificuldade em
demonstrar os sentimentos é o que torna o Asperger menos “humano” aos
olhos da maioria. O que muita gente não sabe é que o Asperger não só
sente tudo, mas como potencializa a frustração em não saber como
demonstrar isso em um angustiante sofrimento.
Essa cena dialoga com um dos momentos mais angustiantes de Bones.
A personagem de Emily Deschanel, Temperance Brennan, sempre teve muita
dificuldade para demonstrar seus sentimentos. Seu padrão lógico de
funcionar sempre a protegeu demais, preferindo evitar qualquer conflito
emocional com o qual não sabia como lidar. No episódio 100 da série, The Parts in the Sum of the Whole,
Booth se declara para a parceira antropóloga, mas esta nega aprofundar a
relação entre os dois por não ter o mesmo “tipo de coração aberto”.
Brennan: Não posso mudar. Não sei como. Não sei como.
Ela estava certa. Não se pode mudar um ser humano. Mas ao longo dos
anos, a personagem vem sofrendo uma transformação de aprendizagem em
relação a percepção do outro.
Temperance Brennan não é uma autista com diagnóstico. O criador da
série disse que apesar de Brennan ter traços de Asperger, não se sentiu a
vontade para assumir isso na história. Nas primeiras temporadas, é
possível identificar esses traços, como em uma cena que Bones se queixa
com a amiga, e diz que sabe que é melhor com ossos do que com gente.
Anos depois, ela aprende com um psicólogo a reconhecer expressões de
raiva, felicidade e tristeza.
A frase “I don’t know what that means”, ou seja, “não sei o que isso
significa”, expressa a inabilidade do Asperger em se interessar por
coisas comuns, assuntos populares. Mas se você perguntar algo sobre
antropologia para ela, é capaz de escutar uma palestra inteira. O que é
engraçado neste personagem é que ela é especialista no ser humano, e
encontra dificuldades em se relacionar com eles.
O jeito de falar engraçado, pausado e monótono é outra característica
do “aspie”. Assim como Brennan, Sheldon talvez seja o autista
não-diagnosticado mais famoso da televisão. Seu jeito direto e sem
filtros sempre acaba em risos do telespectador. Bazinga! Ser aspie é ser
um pouco engraçado. Não entender metáforas também é um traço forte
deste lado do espectro do autismo.
Quem não riu com a Dra. Virginia Dixon em Grey’s Anatomy? Ou
se emocionou com a personagem ao perceber que seu jeito direto acabava
limitando suas interações com os outros médicos, e isso trazia a certeza
de que ela teria uma vida solitária. No final das contas, quem aprendeu
sobre relacionamento foram os doutores do Seattle Grace, que perceberam
que o autista não precisa de compaixão, e sim, de respeito.
Não sou doente, sou apenas diferente
Não se pode curar um autista. Pelo simples fato do autismo não ser
uma doença. Mas em casos mais severos, quando o autista é privado quase
totalmente da socialização, e por vivermos em sociedade, essa falta de
habilidade prejudica a vida de quem carrega a síndrome, é possível
tratá-los com terapias comportamentais, quase sempre alternativas. Por
causa da complexidade do espectro, não há também um tratamento, mas
sabe-se que algumas pessoas superam o autismo com estímulos.
Em Skins, o personagem JJ (Ollie Barbieri) é Asperger. No episódio intitulado JJ,
na terceira temporada, ele ganha destaque ao questionar seu próprio
comportamento, que o faz ser hostilizado pelos colegas. JJ quer ser
normal. O garoto acaba em uma clínica, recebendo medicamentos fortes
para amenizar seu comportamento explosivo e violento, e também para
aumentar seu filtro em conversas. JJ vive depressivo, ser adolescente já
é complicado, ser adolescente autista é um prato cheio para todos os
tipos de confusão.
Como não existe uma “cura”, o autismo mais severo gera angústia para
muitas famílias. Algumas esperam por um milagre, desses que aconteceu em
Roswell, no episódio Samuel Rising. O alien Max Evans
(Jason Behr) tem o poder de curar as pessoas. Como era época de Natal, e
nessa época, as pessoas se sentem responsáveis por amenizar o
sofrimento do mundo, ele sentiu-se compelido em curar um menininho
autista chamado Samuel. No final, ele fez muito mais pelo garotinho, que
conseguia se comunicar com Max. O alien, por meio de um sonho, fez com
que Samuel falasse com a família, e ajudou a eles a entender que ele não
precisava ser curado, e sim, compreendido.
O nome deste episódio é uma analogia ao Programa Son-Rise criado nos
anos de 1970, nos EUA, pelo casal Barry e Samahria Kaufman, que ouviu
dos médicos e especialistas que não havia esperança de recuperação para
seu filho Raun, diagnosticado com autismo severo. Eles passaram então a
estimular o filho, e depois de três anos e meio de tratamento, Raun se
recuperou, cursou uma universidade, e hoje é diretor de uma ONG.
Aumentar a conscientização das pessoas sobre os autistas e suas
realizações pode transformar a maneira como o público vê a síndrome e
outras disfunções mentais e sociais. Esse movimento é o mesmo que hoje
garante uma maior diversidade ética e sexual na ficção. Peculiaridades
neurológicas, no entanto, tem infinitas possibilidades para os
roteiristas, que aos poucos se libertam dos clichês massificados e
exploram todo o leque de possibilidades de desenvolver personagens ricos
e que carregam em si uma causa.
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